
O dérbi já lá vai, a euforia compreensivelmente desmedida sobre a reviravolta com dois golos em quatro minutos de acréscimos faz parte do passado, inesquecível de glorioso para Benfica e inesquecível de tenebroso para Sporting. O campeonato pára por duas semanas e dá espaço para a última jornada de qualificação para o Euro-2024.
Ora como Portugal já lá mora – no Euro-2024, queremos dizer –, o foco desta crónica vira-se para um acontecimento futebolístico no outro lado do mundo, mais precisamente na Indonésia. É o Mundial sub17, um evento fascinante em si mesmo. E porquê? Ponto essencial, a Argentina nunca o ganhou. Mais, nem sequer chega a uma final. Tal como a Itália. E, já agora, Portugal.
Portugal, concentremo-nos em Portugal. A primeira experiência é de valor, em 1987. E é a melhor de sempre, com um terceiro lugar – tal e qual a selecção sénior em 1966, no Mundial em Inglaterra. Desta vez, em 1987, o Mundial sub17 é na Escócia e Portugal vai com tudo: Abel Xavier, Peixe, Capucho, Figo, Gil, Bino, Álvaro Gregório, Miguel Simão, entre outros ilustres.
A fase de grupos é tricky, empate 2:2 vs. Arábia Saudita, vitória 3:2 vs. Colômbia e golo salvador de Lourenço ao cair do pano vs. Guiné Conacri (1:1). Na fase a eliminar, 2:1 de virada vs. Argentina com Figo e Tulipa nos festejos. Segue-se a ½ final e a anfitriã Escócia dá a volta por 1:0 num jogo esquisito, com arbitragem a condizer, e na ressaca de um processo recambolesco em que a polícia prende o guarda-redes Paulo Santos por baixar os calções a alguns adeptos no final do jogo vs Guiné Conacri.
Baaaah, Portugal joga então pelo terceiro lugar. Never ending story. Pois é, Carlos Queiroz e Nelo Vingada, outra vez. Campeões mundiais sub20 e europeus sub16 em Março e Maio, a dupla maravilha acaba em terceiro lugar no Mundial sub17 em Junho. Álvaro Gregório sai da posição de lateral-esquerdo, sobe para extremo e é um ver-se-te-avias. É dele o primeiro remate para defesa de Ali Hassan (9’) e é dele a jogada para um falhanço de Miguel Simão na cara do guarda-redes asiático (10’). Às tantas, Abdulaziz isola-se e atira ao lado (19’). No quadradinho seguinte, Gil escapa-se pela direita e cruza rasteiro para Tulipa. O toque de bola do portista é mágico e dois adversários perdem-se pelo caminho antes do remate vitorioso. A segunda parte é um fartote de bola, com Gil em grande estilo. Primeiro como autor do 2:0, em recarga a uma bola ao poste por Miguel Simão, depois como autor de dois toques seguidos de calcanhar para o 3:0 de Tulipa. Os dois mil adeptos vibram com as notas artísticas portuguesas.
Passam-se uns anos. Uns anos valentes mesmo. Vira-se o século, já estamos em 2003. O Mundial sub17 é agora na Finlândia e Portugal calha num grupo exótico com Iémen, Brasil e Camarões. Que grande salada de frutas, maravilha. Ou não. Portugal começa bem, com 4:3 vs. Iémen. Depois é o fungagá da bicharada e apanha cinco do Brasil. Três dias depois, o tudo ou nada vs Camarões em Tampere, num campo com relva artificial. Acredite, é um jogo inesquecível por tudo e mais alguma coisa.
Para início de conversa, o resultado final de 5:5.
Vieirinha marcou um golo antes do meio-campo, a 60 metros, eleito o melhor do torneio. ‘Ele tentava regularmente esses remates, nos jogos-treino, mas nunca conseguiu marcar porque era difícil apanhar o guarda-redes desprevenido e acertar na baliza. Naquele jogo conseguiu e os espectadores [4.723] ficaram loucos. Aplaudiram mais de um minuto’, descreveu António Violante, o seleccionador.
A seguir, o show de Manuel Curto, autor de três golos em oito minutos no primeiro hat-trick na história dos Mundiais sub-17. Ao intervalo, 4:0. ‘Nesse Mundial, marquei cinco golos, como Fàbregas [Espanha] e Hidalgo [Colômbia], mas fiquei com a Bola de Bronze e quem ganhou a de Ouro foi o Fàbregas, porque era o mais novo.’
No início da segunda parte, Bruno Gama ampliou para 5:0. E agora? É relaxar e desfrutar. Portugal segue só o primeiro mantra. Conhecidos como leões indomáveis, Camarões acorda para a vida e ruge alto, altíssimo. O despertar do rei da selva é uma façanha histórica. N’Gal, que jogaria mais tarde em Leiria (2005-07), entra para o lugar de Song, agora no Arsenal, e mostra as garras com dois golos. “Fomos eliminados com esse empate, mas ganhávamos aquilo com mais um minuto ou dois. Foi pena, mas tudo bem. Ainda hoje sou reconhecido na rua, ainda hoje telefono ao Paulo Machado [um dos 11 portugueses em campo e companheiro de equipa em Leiria] a gozar com ele e fomos recebidos nos Camarões como heróis nacionais. Tantas pessoas no aeroporto, nunca vi nada assim.’
N’Guémo reduz para 5:4 aos 88 minutos e Mbia fixa o 5:5 ao quarto minuto de acréscimos. O espanto é enorme, a frustração corrói as duas equipas: Portugal porque se deixa empatar, Camarões porque vai para casa. Na fase seguinte, já a eliminar, Portugal apanha a Espanha. O guarda-redes Mário Felgueiras chega ao jogo já com 13 golos sofridos e enche mais cinco. Dezoito, ao todo. A Espanha dá 5:2, bis de Fàbregas. O capitão dessa selecção é Miguel Veloso, então no Sporting. ‘Pensámos que tudo estava resolvido, mas, às vezes, um minuto é o suficiente para mudar tudo.’ Palavra de leão. Naquele dia, domado. E lá voltamos ao dérbi do último domingo.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)
Source link